Todos os dias, Wedson parava em frente à Faculdade de Medicinade Barbacena. Na verdade, nem parava, ficava a maior parte do tempo ali, sentado no meio-fio, do outro lado da rua. — Um dia, hei de entrar por esses portões. Rezava e sonhava acordado, imaginando o grande dia em que pudesse, enfim, ser útil à sociedade. Mas sua vida não era fácil. Parecia um bicho. Sua sujeira era tão grande que qualquer cachorro de rua estava em condições sanitárias melhores do que a dele. Sua barba e seu cabelo, havia muito tempo, não recebiam um corte. Embora relativamente jovem, tinha a face envelhecida e os lábios fundos, o que denunciava a ausência de muitos dentes. Passava várias horas sentado,imaginando como seria o momento de sua triunfal entrada por aqueles portões. Quando via os acadêmicos, vestidos de branco,chegando para as aulas, empolgava-se. Olhava para quase todos que passavam por ele, como se esperasse reciprocidade em seu olhar. Cumprimentava alguns,como se quisesse ter seu cumprimento retribuído. Apesar de tudo, mal era notado. Seria um milhão de vezes mais fácil, um “vira-latas”, perdido nas calçadas,receber um afago de algum desconhecido do que aquele homem, quase destituído da condição de ser humano. – Um dia, dar-me-ão atenção,profetizava, confiante, enquanto recitava Mateus 21:22: “e tudo o que pedirdes em oração, se crerdes, recebereis”. Com o tempo, resumiu o texto bíblico em“pedis e recebereis”, o que para ele virou uma espécie de mantra. Então, certa manhã, um daqueles alunos da faculdade pareceu ter sido tocado por suas orações. O garoto – que não tinha mais do que vinte anos de idade – desviou seu olhar para aquele mendigo sentado no passeio. – Como se chama, amigo? – Wedson! Respondeu, levantando-se e retificando a curva na coluna.
– Eu me chamo Gabriel, estudo medicina aqui na faculdade. Tem como eu te ajudar com alguma coisa? “Pedis e recebereis”, Wedson repetiu mentalmente, quase sem acreditar. – Já pequei muito em minha vida, mas agora tenho esperança na indulgência. Quero ajudar a humanidade, servir de instrumento para o conhecimento e contribuir para um mundo melhor. Quer saber, meu sonho é entrar para essa faculdade. Disse Wedson,apontando com a mão aberta para o prédio. Gabriel fixou seu olhar no mendigo por alguns segundos. Como podia um homem com um linguajar tão equilibrado e culto como aquele viver nas ruas? – Vou te ajudar, Wedson.Espere um pouco aqui. Gabriel saiu apressado, quase num trote, e entrou em um pequeno prédio que ficava a uns cinquenta metros dali. Wedson acompanhou, apreensivo e curioso, a inesperada reação do rapaz. Não mais que dez minutos se passaram, e o jovem saiu do prédio, só que dessa vez carregando uma sacola volumosa, que dava para saber que era pesada pela inclinação que fazia no lado direito de seu tórax. – Está aqui, Wedson. – disse Gabriel,estendendo a sacola – foi tudo que usei para conseguir entrarna faculdade. Wedson sorriu e novamente lembrou-se de seu versículo mantra. No entanto, ao ver o que havia dentro da sacola, coçou a cabeça. – Livros C Falou baixinho, sem que desse para saber se ele estava exclamando ou perguntando. – Isso, Wedson! São os livros que estudei para passar no vestibular. Estavam separados para doação e parece que encontrei a pessoa certa. Estude por eles que não vai ter erro. Wedson manteve o sorriso sem dentes afixado no rosto e agradeceu o presente. Gabriel fez uma continência e saiu feliz com a própria caridade. Virou-se umas três vezes para trás enquanto fazia o trajeto até a entrada da faculdade, e, nas três, Wedson olhava para ele – sacola no colo e sorriso estático. Gabriel ainda deu um tchau da porta, antes de sumir prédio adentro.
Wedson fechou a cara. – Garoto de pouca fé! – Murmurou quase ao mesmo tempo que tentou descobrir um destino para aqueles livros. Olhou para o canto do passeio e os empilhou no chão, depois sentou-se em cima. – é... não foi de todo ruim, sussurrou, assim que percebeu um conforto maior que o de ficar sentado no meio-fio. No dia seguinte, Gabriel voltou e trouxe consigo uma colega. – Esse é o Wedson,o que te falei que quer entrar para a faculdade. Wedson, essa é a Júlia, quis te conhecer quando falei de você. Wedson se levantou e cumprimentou a garota, inclinando suavemente o corpo, bem ao estilo de um príncipe espanhol. – O Gabriel me contou que você quer entrar para a faculdade. – Isso mesmo, rezo todos os dias para que Deus me mande um anjo que me ajude na realização deste sonho. Júlia e Gabriel se entreolharam – estava ali um homem que merecia verdadeiramente ser ajudado. – Então vamos fazer assim, disse a jovem, vou tentar te ajudar a entrar para a nossa faculdade. O mendigo encheu os olhos. “Pedi e recebereis”. Seria essa a resposta para seu pedido diário? – Não tenho como agradecer, senhorita... e quando começamos? Perguntou, ansioso, com um sorriso que mal cabia de um lado ao outro de suas bochechas – Bom, pode começar hoje se quiser. Assim que terminar nossa aula, vamos em um cursinho aqui perto, que vou te matricular e pagar até que você consiga passar no vestibular, tá bom? Wedson manteve o sorriso largo e respondeu com um leve sobe e desce da cabeça. E ficou assim até que Gabriel e Júlia entrassem na faculdade. Depois disso, o sorriso evaporou-se. – Cursinho CC – resmungou rangendo os dentes – Garota de pouca fé! Wedson acreditava tanto que tudo que quisesse conseguiria pela oração, que sabia que Deus enviaria um anjo que o ajudaria a entrar naquela faculdade. De repente,ele sentiu uma vontade de chorar e, inspirado por uma fé poderosa, jogou-se de joelhos no chão e levantou as mãos ao céu.
– Senhor, onde estás que não me ouves? – Wedson bradou,sem sentir vergonha dos transeuntes – Há tempos te peço o milagre da conquista de meu sonho e não me contemplas? Tu mesmo disseste, senhor, “pedis e recebereis!”. Te peço um anjo que me ajudes, e me manda um garoto e uma garota? Te peço um milagre, e me manda livros? Um cursinho? Tu não me amas, senhor?
Após quase perder a voz em seu clamor, num soluço profundo de dor e decepção, Wedson abaixou a cabeça, refletindo sobre sua desgraça e sua má sorte na vida.
Depois de alguns minutos na mesma posição, ele reergueu a cabeça e respirou fundo. Foi aí, que algo sobrenatural aconteceu. Wedson olhou para a portão da faculdade e viu um ser enorme, uns dois metros de altura. Tinha duas asas longas que quase tocavam o chão. Vestia uma roupa branca, brilhante, e, em sua cabeça, havia uma coroa de ramos com folhas douradas.
– O anjo! Balbuciou ao mesmo tempo que enchia-se de orgulho em perseverar no “pedis e recebereis”.
O anjo olhou para aquele pobre mendigo e sorriu. Em seguida, fez um sinal com a mão, bem suavemente, chamando-o em sua direção.
Wedson ficou eufórico, mas manteve-se como se sereno estivesse. Respirou profundamente mais uma vez e começou lentamente a atravessar a rua, em direção ao anjo e à faculdade. No caminho, uma espécie de filme passou por sua cabeça. Lembrou-se de sua infância miserável, da morte precoce de seus pais, da perda de cinco dos seus sete irmãos, das muitas vezes que passou fome, do frio da noite e das incontáveis vezes que foi ignorado pelos seres de sua espécie. Perdoou a todos, inclusive ao Gabriele à Júlia, pela falta de fé, e por pretenderem dar a ele um caminho mais complexo para a realização de seu sonho.
Quando faltavam dois metros para chegar ao outro lado da rua, Wedson foi atropelado por um carro, cujo motorista dirigia embriagado e em alta velocidade.
Indigente, seu corpo passou a fazer parte do Laboratório de Anatomia da Faculdade de Medicina de Barbacena.
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